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Limites da rerratificação do título causal no Registro de Imóveis: jurisprudência em revista


Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro ¹



Tema recorrente nas Notas e nos Registros é o exame da possibilidade de ser feita rerratificação de títulos que se submetem ao Registro de Imóveis.


A questão mais tormentosa cinge-se à possibilidade ou não de se promover alterações relevantes em elementos essenciais dos negócios jurídicos, sobretudo nos translatícios de domínio. Afinal, como se sabe, o Brasil adotou o sistema de transmissão da propriedade imóvel do título e modo e, uma vez presentes os elementos do negócio jurídico basal, com a inscrição predial formalizada, opera-se a mutação júri-real, ou seja, a efetiva transmissão da propriedade do alienante para o adquirente.


Colhe-se da valorosa jurisprudência administrativa paulista precedentes interessantes, mas que não autorizam conclusões estanques a respeito da matéria.


Confira-se a seguir o escólio jurisprudencial.



1)- Inclusão de donatário por rerratificação


Permitiu-se a rerratificação de escritura pública de doação para inclusão de novo donatário que, aliás, sequer era nascido ao tempo do negócio jurídico inicial. Na hipótese, a escritura pública de doação ainda não havia sido registrada, de modo que ainda haveria disponibilidade patrimonial do doador.


Registro de Imóveis - Dúvida improcedente - Escritura pública de instituição de usufruto, doação com reserva de usufruto e outras avenças, rerratificada por outra escritura pública, com inclusão de novo donatário e divisão de imóvel rural - Doação de vários imóveis rerratificada para inclusão de donatário nascido após a doação é admissível, salvo para o bem que já saiu da esfera de domínio da doadora, por falta de disponibilidade - Cindibilidade de título que conduz a procedência parcial da dúvida - Recurso parcialmente provido. (Cf. CSMSP - Apelação Cível 583-6/1, Rel. Des. Gilberto Passos de Freitas, j.30/11/2006).


2)- Rerratificação de compra e venda para constar origem dos recursos


Precedente ilustrativo garantiu a possibilidade de rerratificação de venda e compra já registrada para constar a origem do numerário utilizado na aquisição, mas concluiu pela impossibilidade de aposição de cláusulas restritivas de domínio. Aplicou-se, à hipótese, a cindibilidade do título.


A informação acerca da origem do dinheiro empregado no pagamento do preço do imóvel (no presente caso, a doação feita pelos pais do adquirente-varão) pode ingressar no fólio real. A uma, considerando que as hipóteses de averbação, capituladas no art. 167, II, da LRP, são meramente exemplificativas, não constituindo numerus clausus, conforme reiterado entendimento desta Corregedoria Geral da Justiça. A duas, ante o interesse do cônjuge em caracterizar, no seu matrimônio mediante comunhão parcial, a hipótese da aquisição de bem particular, privativo e exclusivo, nos termos dos arts. 1658 e 1659 do Código Civil. (Cf. CGJSP - Processo 68521/2011, Des. Maurício Vidigal, j.21/07/2011).

Ainda nessa temática, interessante considerar se a pretendida alteração, com vistas à exclusão do bem da comunhão do casal, poderia ser feita por ocasião do término da sociedade conjugal.


Há precedente no sentido de que somente seria possível através da rerratificação do negócio jurídico aquisitivo, mas previamente à partilha do casal em razão do fim da sociedade conjugal.


Registro de Imóveis - Bem imóvel adquirido pelo cônjuge varão na constância de casamento submetido ao regime da comunhão parcial de bens, sob a égide da Lei n. 6.515/1977 - Ausência de menção na escritura de que a aquisição se deu com numerário doado pelo genitor - Registro efetuado com base no título apresentado - Comunicação do bem nos termos do art. 1.660, I, do Código Civil - Impossibilidade de averbação quanto a ser o imóvel próprio do varão, com amparo em declaração de ambos os cônjuges por ocasião da separação judicial do casal - Elemento estranho ao título e deste omitido - Necessidade de prévia re-ratificação da escritura pública - Homologação judicial da partilha que não implica deliberação a respeito da retificação do registro ou do título que lhe deu origem - Recurso não provido. (CGJSP - Processo 2008/85100, Des. Ruy Pereira Camilo, j.15/10/2008).

De modo diverso, mais recentemente, entendeu-se que é perfeitamente possível que a sub-rogação, embora não conste do registro imobiliário da aquisição do imóvel, seja reconhecida no momento da dissolução do vínculo conjugal.


Registro de Imóveis - Dúvida inversa julgada procedente - Carta de sentença extraída de ação de divórcio consensual - Exigência consistente de comprovação do pagamento do Imposto de Transmissão “Causa Mortis” e de Doação de Quaisquer Bens e Direitos - ITCMD, ou da declaração de isenção emitida pela Fazenda do Estado - Partilha em que constou, de forma expressa, que parte do preço da aquisição do único imóvel partilhado foi pago em sub- rogação da venda de outro imóvel que era de propriedade exclusiva da cônjuge, porque foi adquirido antes do casamento pelo regime da comunhão parcial de bens - Apenas parte do imóvel te a natureza de aquesto, o que acarretou a atribuição, a seu favor, de maior quinhão do imóvel partilhado - Declaração dos cônjuges, integrante do plano de partilha que foi homologado, que se presume verdadeira - Comprovação, ademais, da aquisição pela mulher, quando solteira, de outro bem imóvel, e da sua venda durante o casamento, em data próxima da compra do imóvel partilhado na ação de divórcio, de modo a confirmar a causa da partilha desigual - Perfeitamente possível que a sub- rogação, embora não conste do registro imobiliário da aquisição do imóvel, seja reconhecida no momento da dissolução do vínculo conjugal - Exigências afastadas - Recurso provido. (Cf. CSMSP - Apelação Cível 1029500-81.2023.8.26.0554, Des. Francisco Eduardo Loureiro, j.29/05/2024).


3)- Inviável rerratificação de compra e venda para alterar o imóvel alienado, ainda que tenha havido erro na indicação do lote


A rerratificação da compra e venda para alteração do lote alienado é inviável, pois diz respeito a elemento essencial do negócio (na venda e compra, a coisa, o preço e o consenso das partes). Eis o limite da rerratificação: a não modificação da declaração de vontade das partes, nem a substância do negócio jurídico realizado. Frise-se: ainda que não registrado o título no RI. (Cf. CGJSP - Processo 1073694-83.2017.8.26.0100, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j.13/03/2018).


4)- Falecida uma das partes iniciais, necessário alvará judicial para a rerratificação


A rerratificação necessita da participação de todas as partes que compareceram ao ato a ser sanado. Caso uma delas tenha falecido, somente através de alvará judicial autorizativo será possível a lavratura da escritura de rerratificação.


REGISTRO DE IMÓVEIS - Escritura de re-ratificação em que um dos alienantes, já falecido, foi substituído por seus sucessores, os quais comparecem em nome próprio - Ingresso obstado - Registro inviável - Ofensa ao princípio da continuidade - Necessária a apresentação de alvará para representar o espólio - Recurso não provido. (Cf. CSMSP - Apelação Cível 990.10.404.867-2, Rel. Des. Antonio Carlos Munhoz Soares, j. 14/12/2010).

Do didático precedente acima ementado são extraídas valiosas lições doutrinárias.


Não há possibilidade de retificação de escritura sem que dela participem as mesmas pessoas que estiveram presentes no ato da celebração do negócio instrumentalizado. É que a escritura nada mais é que o documento, o instrumento escrito de um negócio jurídico; prova pré-constituída da manifestação de vontade de pessoas, explicitada de acordo com a lei. Não se retifica manifestação de vontade alheia. Em outras palavras, uma escritura só pode ser retificada por outra escritura, com o comparecimento das mesmas partes que, na primeira, manifestaram sua vontade e participaram do negócio jurídico instrumentalizado". (Narciso Orlandi Neto, in Retificação do Registro de Imóveis, Ed. Oliveira Mendes, 1997, p.90).

A propósito das eventuais dificuldades que podem surgir com a necessidade de ser lavrada escritura de retificação, complementa o festejado doutrinador:


"Se aquele que deve participar da escritura de retificação faleceu, cumpre pedir ao juízo do inventário que, ouvidos todos os interessados, autorize, por alvará, o inventariante ou outra pessoa a comparecer à escritura de retificação e, em nome do espólio, manifestar sua vontade para ratificar o negócio feito pelo "de cujus" e retificar o erro que contaminou o registro (conf. "Aspectos da Escritura Pública", Sebastião Amorim e José Celso de Mello Filho, in Revista de Direito Imobiliário n.1/27).

E mais:


"Se a parte está desaparecida ou se recusa a comparecer à escritura de reti-ratificação, tem o interessado direito de ação para suprir o consentimento de quem não é encontrado ou, injustamente, o recusa. Em ambos os casos, será o réu citado (por editais ou pessoalmente, na forma da lei processual) para comparecer em dia e hora previamente designados, em determinado tabelião, para participar da escritura de reti-ratificação. Se não comparecer, o juiz declarará suprida a falta da declaração de vontade e expedirá alvará que será transcrito na escritura de reti-ratificação. Se o réu é a única pessoa que deve comparecer à escritura, além do interessado na retificação, pode o juiz simplesmente declarar suprido o consentimento para a reti-ratificação. Nesta hipótese, a carta de sentença será o documento hábil para a retificação do registro."


5)- Inviabilidade de aposição de cláusulas restritivas de domínio quando já registrada a doação


Com a inscrição no registro imobiliário da escritura de doação, título que se mostrava regular, operou-se a transmissão do domínio dos doadores para os donatários. Inviável, portanto, a atual pretensão daqueles que deixaram de ser titulares do domínio de reservarem usufruto e imporem cláusulas restritivas aos atuais proprietários, irrelevante a expressa anuência destes, por ser contrária ao direito a possibilidade de que viessem a impor tais gravames aos próprios bens, cuja consequência é a de limitação da sua responsabilidade patrimonial. A imposição de cláusulas restritivas, assim como a criação do direito real de usufruto, devem ocorrer no próprio ato da liberalidade, por se constituírem em atos que somente podem ser praticados pelos titulares do domínio, transmitido com o registro da escritura de doação. (Cf. CSMSP - Apelação Cível 056317-0/1, Rel. Des. Sérgio Augusto Nigro Conceição, j.26/03/1999).


Diferente cenário, entretanto, descortina-se quando se objetiva apenas complementar a escritura original para esclarecimento da "justa causa" na clausulação de bens que compõem a legítima:


A falta de referência, no título, à inclusão dos bens doados entre os que compõem a parte disponível faz presumir o adiantamento de legítima, como expressamente estabelece o art. 2005 do Código Civil. Uma vez que o disposto no art. 1848, “caput”, do Código Civil, aplica-se à doação entre pais e filhos, como adiantamento de legítima, também aplicável o art. 2042, dada a identidade de situações. A doação foi feita em 15 de março de 1999, antes da entrada em vigor do atual Código Civil. Ambos os doadores faleceram em 2009 (fls. 12 e 13), sem promover o aditamento do contrato para declarar a justa causa da cláusula aposta. Mas a falta de justa causa compromete apenas a validade da cláusula restritiva, não da doação. (CSMSP - Apelação Cível 0024268-85.2010.8.26.0320, Des. Maurício Vidigal, j.21/11/2011).



6) Possibilidade de alteração do comprador em escritura de venda e compra ainda não registrada


Registro de Imóveis – Dúvida julgada procedente –Escritura de compra e venda objeto de rerratificação para alterar o comprador que passou a ser pessoa jurídica de que são sócios os adquirentes originais – Possibilidade, uma vez que a rerratificação ocorreu antes do registro do negócio jurídico - Imposto de Transmissão "inter vivos" recolhido em nome do anterior adquirente – Necessidade de comprovação do pagamento do imposto em razão da transmissão realizada para a nova adquirente – Alegação de dificuldade para a retificação da guia de recolhimento do ITBI, ou para a repetição do indébito, que não comporta solução no procedimento de dúvida que tem natureza administrativa e em que o Município não intervém –Recurso não provido. (Cf. CSMSP - Apelação Cível 1001939-02.2017.8.26.0390, Rel. Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j.28/03/2019).

Segundo a fundamentação do decisum, essa alteração não acarreta a nulidade do negócio jurídico, nem impede o registro da compra e venda para a apelante porque a escritura rerratificada não foi registrada, com transferência do domínio do imóvel aos compradores originais, e porque esses compradores anuíram com a modificação realizada.


Ademais, sendo o registro do título constitutivo do direito real de propriedade, não existe impedimento para que a nova compradora passe a figurar na matrícula como proprietária do imóvel, pois a data da aquisição do domínio será a do protocolo do título no Registro de Imóveis, a que retroagem os efeitos do registro. E no registro constará como título aquisitivo a escritura pública de compra e venda com sua rerratificação que foi realizada quando a empresa compradora já estava regularmente constituída.



7)- (In)viabilidade de alteração do preço do negócio jurídico translativo já registrado


Entendeu-se, inicialmente, que por se tratar de elemento essencial do negócio jurídico, uma vez registrada a escritura, seria inviável a alteração do preço, pois já se operou a transmissão do imóvel nas condições inicialmente aprazadas.


Registro de Imóveis. Recurso de apelação recebido como recurso administrativo. Pedido de retificação. Suposto erro na lavratura do ato notarial e sua inscrição no fólio real. Impossibilidade. Modificação da substância do ato. Recurso desprovido. (Cf. CGJSP - Processo 1017486-48.2018.8.26.0196, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j.06/09/2019).

Assim, realizado o registro de acordo com o título apresentado, como ocorrido no caso concreto, não há que se falar em retificação para correção de erros inerentes ao próprio título. Na verdade, tal alteração traduziria clara modificação quanto à manifestação de vontade das partes, assim como na própria substância do negócio jurídico, o que não é cabível na hipótese.


Entretanto, no mesmo tema de fundo, em caso similar, o entendimento foi outro.


Pedido de providências. Registro de imóveis. Averbação. Escritura de rerratificação para alteração do valor do negócio jurídico. Participação de todos os contratantes. Cumprimento das formalidades formais. Ausência de prejuízo a terceiros. Recolhimento de tributo e emolumentos calculados de acordo com o novo valor. Acolhimento do pedido de averbação. Recurso provido. (Cf. CGJSP - Processo 1001647-05.2023.8.26.0035 , Des. Francisco Eduardo Loureiro, j.21/06/2024).

Fundamentou-se que não há vedação para que seja averbada a retificação do valor do negócio jurídico. Assim porque a alteração do valor atribuído ao imóvel decorreu da vontade de todas as partes que para essa finalidade celebraram escritura pública de rerratificação em que foram observados os requisitos formais de existência e validade do negócio jurídico.


Ainda que se cuide de negócio jurídico bilateral e oneroso, não houve exclusão de elemento integrante do tipo negocial, mas modificação do valor que, embora distinto do originalmente previsto, passará a corresponder ao que foi atribuído ao imóvel conforme a vontade das partes. Ademais, a averbação não impedirá que sejam conhecidos os termos originalmente pactuados para o negócio jurídico e os decorrentes da retificação, para que ambos possam ser considerados pelos órgãos competentes para verificar os seus efeitos contábeis e fiscais.


Por todos os precedentes visitados, é possível atestar a alta complexidade do tema que deve ser avaliado concretamente, caso a caso, à luz da prudência e independência jurídica de notários e registradores.



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1. Registrador imobiliário. Atualmente exerce a delegação do Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Pedreira/SP. Pesquisador da Escola Nacional de Notários e Registradores (ENNOR). Professor de direito registral em cursos de graduação e pós-graduação. Autor dos livros “Alienação Fiduciária de Bens Imóveis”, Editora Thomson Reuters - RT, em sua 2ª Edição (2022); e “Registro de Imóveis: Anotações à Lei 14.382/2022” pela Editora Forense (2023).



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